PALAVRAS DE SEDA

Escrever passou a ser necessidade diária, como a respiração mantém o corpo vivo, o ato de escrever mantém minha alma solta para trafegar pelo mundo dos sonhos.
Ao me deixar levar pelas palavras visualizei novo horizonte e criei asas. Voei.
Em vinte anos escrevi dezenove livros em vários estilos: conto, crônica, poesia, romance e biografias.
Alguns de meus livros biográficos foram livremente inspirados para o cinema e TV. Ganharam prêmios.
O importante é continuar escrevendo, registrando histórias e estórias para que a memória não se perca no mundo digital.
De tanto escrever biografias resolvi deixar o registrado meu ensaio biográfico cujo viés é meu Anjo da Guarda. Pode parecer um pouco estranho, porém é bem real. Por isso, acesse também o meu blog "Os Anjos não envelhecem", eu disponibilizei meu livro na íntegra, onde constam fotografias e documentos. O livro físico está esgotado.
Viaje através das palavras. Bem-vindo (a).

















































































































quinta-feira, 5 de agosto de 2010

NO REINO DE GOIÁS

Se bem me lembro uma das primeiras pessoas que conheci em Goiás foi Ana Maria. Numa manhã de sol, procurei casa para alugar, a manhã toda, sem resultado, ao passar pelo Restaurante Braseiro, o cheiro bom da comida me lembrou que a fome apertava. Não tive dúvidas, adentrei, sentei-me e olhei o ambiente. Não parecia restaurante, me senti em casa. Ainda mais pelo fogão a lenha.


Veio uma mulher sorridente, olhou minhas anotações, em cima da mesa, em um caderno. Informei que procurava casa para morar. Ela me indicou uma, de sua vizinha, na travessa central. Depois me passou o sistema de atendimento, o cardápio e perguntou se eu queria beber alguma coisa.

Junto com a travessa de arroz com pequi veio a pergunta: ‘você sabe comer pequi?’ , eu, cá com meus botões, refleti a resposta, concluí que era fácil: ‘sei sim!...’, pensei que seria uma coisa simples, tinha escutado o conselho de que pequi se come com as mãos, talvez fosse essa a preocupação dela. Comecei a me deliciar com tanta comida vilaboense. No momento de comer o pequi, gesticulando em câmera lenta, peguei o pequi e abri a boca, grande demais para passar despercebida. Ana Maria veio gritando: ‘pára... pára!... não faça isso!’. Eu parei na hora, o caroço caiu no prato. Ela pegou a faca, raspou o caroço e me mostrou os milhares de espinhos, minúsculos que existiam no centro da iguaria. Fiquei sem fôlego.

Daí nasceu uma grande amizade. Abençoada pelo pai de Ana Maria o querido Benício, vizinho de Cora Coralina foi quem a carregou nos braços quando caiu perto da biquinha d´água. Foi para ele que Cora no poema Ode às Muletas relatou: ‘Um vizinho possante /me leva em braços/de gigante’. Esse vizinho foi meu amigo por um bom tempo, até o dia em que foi ao encontro de sua querida ‘dona Cora’, como fazia questão de falar.

Uma amizade vilaboense é diferente de tudo que já tive e tenho de amigas... e olha que são muitas. As de mais tempo: 30, 25, 18 e 10 anos permanecem na integridade de uma divisão de interiores, isso mesmo, moram em meus pensamentos, converso com elas todos os dias e sempre me respondem; o bom é que pelo menos uma vez por semana a gente se vê, fazemos algum programa juntas, só pelo prazer da amizade, conversamos pelo telefone, sempre, diariamente... pela Internet quase nunca. Ter amigo na cidade de Goiás me ensinou que a solidão não tem lugar no quotidiano deles, nem a tristeza e muito menos a fome. Todos os dias eu recebia amigos e conhecidos em minha residência na travessa Central e depois no beco do Cisco. Fui me adaptando aos costumes vilaboenses a tal ponto de receber o título de Cidadania Vilaboense. Descobri costumes que são dignos de escrever. Agora, decantados pela água do tempo, vejo-os com mais nitidez e um desses costumes me marca até hoje.

Certo dia, Ana Maria e José Peres, vindos do Araguaia, fizeram uma peixada e me convidaram para essa apreciação culinária. Na cozinha, enquanto Ana Maria abria a cabeça do peixe, me explicou: ‘Rita, aqui dentro da cabeça dessa Corvina tem uma pedra...’, tirou a pedra, lavou, me entregou e com olhos mareados me contou que em Goiás, as amizades são seladas com essa pedra, quando recebidas é sinal de eterna amizade, irmandade, passamos a ser parentes, irmãs. Fiquei sem saber o que falar, não imaginava aquilo. Peguei a pedra, pedi para que ela me chamasse só pelo apelido de criança, ela me atende a isso até hoje. A pedra... ah! essa pedra está guardada comigo.

A amizade minha e de Ana Maria é sólida, abençoada por Deus e selada em pedra. Em minhas leituras coralineanas um dos poemas que mais gosto é MEU DESTINO, onde a poeta descreveu o reencontro de um amigo que depois de muitos anos, sorriram e se falaram... ‘Esse dia foi marcado/ com a pedra branca/ da cabeça de um peixe’; e depois desse ato seguiram juntos. Um ritual vilaboense como poucos. Vou explicar sobre isso. A pedra na cabeça da corvina é de cristal de silício, ela serve para orientar o peixe na água. Já que as corvinas vivem em par, esse cristal vibra mostrando sua posição, para não se perderem uma da outra. Só mesmo uma amizade sincera merece essa pedra.

Uma das alegrias minha nessa recente viagem à linda cidade de Goiás foi-me apresentada por Ana Maria. Tirou do pescoço uma jóia de família e me explicou que aquele era um sinal de eterna amizade com sua falecida mãe, Alair. É uma pedra de corvina, circundada por um anel de ouro, presa por uma faixa onde podemos ler as iniciais de seu nome, jóia maternal de há mais de 70 anos.

foto: Anna Louise Di Peres

Eu tenho na minha sala uma tigela de louça com algumas pedras de corvina, penso em fazer jóias de cinco delas e passar para amigas que são únicas para mim. Sei que cada uma tem identidade própria. Como cada pedra, tão diferentes uma da outra.

Deixo aqui um alerta aos pescadores, onde fisgam uma corvina, jogue a isca novamente e traga a outra (se isso for possível) pois a solidão não acompanha a amizade.

Rita Elisa Seda
Cronista, poeta, biógrafa, fotógrafa e jornalista.
www.ritaelisaseda.com.br

2 comentários:

Silvinh@ disse...

Puxa, Rita Elisa, que lindo!!!
Sabe que adoro pescar!!! Faz tempo que não pesco, mas houve um tempo que fazíamos isso constantemente....Que delícia!!!Aqui na nossa região temos o rio Tietê. Rio Tietê? Sim!!!!!Aquele poluidíssimo de São Paulo????? Sim, é o mesmo, mas aqui no interior é limpíssimo, nem parece o mesmo...Há alguns anos atrás, num período difícil de nossas vidas, íamos toda semana num pesqueiro da minha cunhada (irmão do Valtinho, meu noivo), em Borborema, onde nossa maior especialidade era pescar corvinas...`Não sei se você já pescou corvinas....É a coisa mais fácil do mundo....ela é muito inocente, não precisa nem saber pescar, ela vem na isca, é tá fisgada....Ah....respeitnado o tamanho pela polícia ambiental, com certeza. Sabia da existência desta pedra,várias vezes ao limpar as corvinas tiramos esta pedra branca, lembro-me nitidamente, mas nunca soube, que poderia ter um valor tão grande relacionado à AMIZADE.....rsrsrsrsrsrs
Maravilhoso!!!Super Beijo!!!
Lindo texto, Parabéns Amiga!!!

Rita Elisa Seda disse...

É isso... Silvinha! Amizade selada com pedra de corvina é para a vida toda. São esses lindos costumes que nos fazem ver a vida de outra maneira. Ao pescar uma corvina, novamente, dê a pedra para sua melhor amiga. Isso vai fazer bem a voce e a ela. Beijos, felicidades e a paz!