Para aqueles que estão esperando o lançamento do livro Cora Coralina: Raízes de Aninha; eis aqui um aperitivo, dos bons, o Prefácio do livro. Deliciem-se e compareçam ao lançamento. Conto com todos, pois são momentos como esse que o amor prevalece, a alegria acontece e a paz reina.
Rita Elisa Seda
CORA...
Desistir? Eu já pensei seriamente nisso, mas nunca me levei realmente a sério.
É que tem mais chão nos meus olhos do que cansaço nas minhas pernas,
É que tem mais chão nos meus olhos do que cansaço nas minhas pernas,
mais esperança nos meus passos do que tristeza nos meus ombros,
Por que um livro como este? Por quê?
De uma autora que escreve espera-se que entre os seus escritos esteja contida a sua vida, velada, vestida, nua ou não. Alguns críticos da literatura serão contrários a que se busque na pessoa, na sua biografia, até mesmo nos cenários e contextos de sua vida social algum suporte, alguma fissura ou o eu seja para explicar a sua obra. Que o trabalho escrito inscreva e explique por si mesmo quem o escreve. Que a obra fale pelo autor e, não, a sua vida por sua obra. Outros dirão que não. Quero ser um deles.
E acaso não é esta uma das marcas dos tempos em que vivemos? Talvez os sinais de um futuro tão incerto, tão indecifrável, apesar de tantas previsões em uma sua face e na outra. Talvez o presente tão frágil e tão passageiro, tão pobre de pessoas e de gestos carregados do peso do sentido e da beleza. Tempos em que “tudo o que é sólido desmancha no ar”. Talvez por tudo isto e um pouco mais do que apenas “isto tudo” nos conduzam a querer voltar não somente à obra deixada por pessoas singulares, mas à sua vida. Ou a algumas dimensões de vivências de sua vida. Seus amores, suas lutas, seu sofrer. A obra talvez nunca escrita, ou talvez apenas aqui e ali rascunhada aos fragmentos, que é, aquém e além do que deixou por escrito, uma outra fala de sua própria vida.
Então é bom voltar a Goiás – Cidade de Goiás, Vila Boa de Goiás, Goiás Velha – e ver ao lado das águas que ainda passam e já não são mais tão claras e tão “vermelhas” do Rio Vermelho, uma casa logo ao lado do “outro lado da ponte”. Uma casa como algumas outras da velha cidade. Uma casa de um só andar, nem de pedras e nem de duras argamassas. Dessas casas escuras, armadas com ferros e outros artifícios contra o passar voraz do tempo. Ao contrário. Uma casa branca e de janelas azuis, feita entre o barro amassado à mão e os antigos adobes, tijolos secados no sol. Matérias frágeis que mãos hábeis arrancavam das beiras e dos barreiros dos rios e misturavam com água e cal. E edificavam com elas casas e igrejas. O falar delas através da fala de Cora virá um pouco adiante. Vocês esperem.
Saber de pessoas, suas vidas, seus segredos um dia aos poucos revelados por elas próprias, confidentes de sempre ou de última hora, ou por outras mulheres e outros homens. Saber aquilo que, por pudor ou por esquecimento, uma mulher que falou com uma tão rara coragem em seu tempo, sobre as armadilhas e os ardis de seu próprio tempo, silenciou a respeito de si mesma.
Mas não Cora, que desde os primeiros livros disse em prosa e verso quem ela era, a pequena e deixada ao lado, Aninha do vintém de cobre. A menina ainda pequenina e já sofrida. Em um tempo em que as mulheres de cidades como Goiás – escritoras ou não – guardavam segredos de si mesmas e se gastavam em louvar os seus e os outros seres eleitos de suas memórias – em geral os “vultos do lugar” - Cora Coralina os esquece e escreve sobre ela mesma, sobre os seus, seus mundos e os outros de seu tempo, deserdados da sorte, com uma coragem em que algumas pessoas querem ver a bruxa, quando deviam ver a fada. Aquela que, com um toque dos dedos, desnuda o mal do mundo.
No entanto, se ela escreveu desde sempre sobre ela própria, porque escrever, tantos anos depois, um livro sobre ela? Se quase toda a poesia de Cora Coralina é uma também biografia escrita “no calor da hora”, como em Cecília Meireles e, bem mais ainda, como em Adélia Prado, porque redizer o que ela já disse por escrito? Se com uma tão bela e feroz clarividência ela se desnudou, entre a confissão de si mesma e a crítica acurada de seu mundo, ao mesmo tempo em que, para dizer a verdade da beleza do que havia ao seu redor, ela pedia ao milho da terra e aos filhos dos homens que tirassem de sobre a pele as suas cascas, as suas roupas, e se mostrassem na dura aspereza e na suave inocência de seus corpos, porque escrever sobre ela, Cora? Por que este livro? Por que Cora Coralina – raízes de Aninha?
Ao ler o livro e ver suas imagens o leitor verá os seus motivos, desde as primeiras páginas. Entre os poemas e outros escritos de si mesma e de seus mundos, conhecemos de Cora Coralina algumas de suas raízes mais profundas. As raízes fincadas no chão da Cidade de Goiás. E conhecemos, entre os galhos mais altos e por sobre a copa da árvore da pessoa de Cora, os seus frutos. As lembranças tardias de quando, tantos e muitos anos depois, ela volta à cidade e à casa de que nunca saiu quando foi embora para São Paulo. Talvez ela tenha antecipado em seus gestos de peregrina, errante e estrangeira que um dia volta, uma bela frase dita por algum personagem de Mia Couto, em alguma página de algum de seus livros: “os homens voltam para casa; as mulheres são a casa”.
Este livro recobre silêncios. Momentos do esquecimento. Passagens da vida espalhadas por ela nos cantos das casas em que viveu em Jaboticabal, em Penápolis, em algum bairro de São Paulo, entre os barros de uma Andradina recém-criada e, claro, em uma Goiás de antes da ida e uma outra, depois da volta. Passagens que poderiam haver ficado na sombra para sempre, e que neste livro retomam o seu lugar entre os recantos da “casa velha da ponte”. O grande perigo da lembrança de quem criou tanto e se foi antes de nós, é transformar uma pessoa notável em um personagem, e o personagem em uma celebridade (este adjetivo que a mídia de agora tornou tão vazio!), e a celebridade em um mito, e o mito, e o mito em um ídolo. E um ídolo em tudo, menos no ser da pessoa que ele encobre.
Mesmo que alguns leitores encontrem entre as páginas de Raízes de Aninha uma Cora colorida demais - e ela coraria ao se ver assim – celebrada demais, separada demais das outras pessoas “comuns”, na verdade o que este livro revela é, mais do que os contextos, cenários e cenas da vida de Cora Coralina, as suas múltiplas e (algumas) quase silenciadas vivências. Sabemos de suas confidências ditas e escritas e do que já se escreveu sobre ela.,. que Cora foi uma mulher escritora de seu tempo, uma poeta, uma severa crítica e uma silenciosa – mas nunca silenciada – militante de causas sociais. Razões de luta acesa que além de serem ditas por escrito em seus livros, foram faladas de público muitas vezes – inclusive nos ásperos tempos dos governos militares – e foram vividas por uma mulher que, não esqueçamos, tinha em Francisco de Assis um seu modelo de vida e de virtude e poderia ter outro em Gandhi. Mas que nos anos mais escuros de uma história acontecida também dentro da Cidade de Goiás e entre Goiás e a Amazônia, a fez admiradora e amiga de dois bispos notáveis pela sua coragem: Tomás. Balduíno e Pedro Casaldáglia
Foi entre as páginas deste livro que eu - um alguém que entrou algumas vezes na “casa velha da ponte” e que em algumas, entre café e doces, conversou devagar com Cora – descobri ou relembrei a mulher casada e mãe, e avó e bisavó; e a dona de pensão e de uma loja de retalhos chamada “Borboleta”. A mulher que para viver e “criar os meus filhos” depois da morte do esposo vendeu pelas ruas de São Paulo livros da José Olympio, e vendeu doces. E que mais tarde e mais afortunada, possuiu um sítio e semeou e colheu com as mãos o que plantou.
Tenho lembranças de suas falas, de sua vida. Quero recordá-las aqui, porque uma delas revela uma face da mulher de casa e da doceira Cora e, a outra, a sua face de mulher que não precisa ir além da calçada de casa para saber em que mundo se viveu “ali”, antes dela, e em que mundo se vive ainda agora.
Na primeira vez em que estivemos juntos – era no meio dos anos setenta - ela estava no quintal da casa. Um grande quintal que em parte margeia as águas do Rio Vermelho. Ela cuidava de plantas e colhia frutas. Assim que desapertamos as mãos ela me levou a passear entre as árvores do quintal. E, sem que eu perguntasse coisa alguma foi revelando o que era cada uma, sobretudo aquelas que, como as figueiras, davam a ela os frutos caseiros de seus doces.
Quando entramos na casa ela começou a colocar em pequenas caixas de papelão sem rótulos ainda, primeiro uma folha fina de papel de seda, depois, um a um, os seus doces. E então disse uma frase que com pequenas mudanças coloquei em um poema dedicado a ela, bem depois de quando ela se foi, e com que desejo encerrar estas lembranças e confidências. Ela disse: “eu sou doceira”. E depois falou que mesmo escrevendo desde sempre, a poesia era o que ela fazia quando não criava doces. E não disse uma palavra em favor de seus poemas. Mas os olhos pequenos brilhavam de orgulho quando falava deles, os seus doces. “Eles têm pouco açúcar e são doces. E este é o meu segredo”. E eram assim. E narrou longamente o caso do padre que levou uma caixa de doces ao “Santo Padre”, o Papa.
Anos depois, mas não tantos, eu fazia uma pesquisa sobre os negros da Cidade de Goiás. Era estudante de Mestrado em Antropologia e aquela seria a minha dissertação. Conversei com muita gente: brancos, mestiços e, sobretudo, negros. Fui uma tarde conversar com Cora Coralina. Antes, entre outros de lá, ouvira dos brancos falas evasivas sobre os negros escravos do passado e os de agora. E eu me lembrei das duras palavras de Auguste de Saint-Hilaire quando, entre as minas de Minas e as de Mato Grosso, ele passou pelas de Goiás e esteve na “Vila Boa” a caminho de Cuiabá.
Perguntei sobre os negros: os de antes, os de agora.
E antes de dizer qualquer resposta ela se levantou da cadeira e saiu para o lado fora da casa, dando com a mão sinais de que eu a seguisse. Na calçada, diante da porta da “casa da ponte” ela repetiu um gesto que, a meu ver, foi sempre a sua assinatura corporal. Estendeu os braços com as mãos abertas e os dedos juntos, com o gesto largo de quem, com um pouco mais, poderia alçar vôo. Ainda sem falar nada apontou lugares que se via e lugares escondidos entre os outros: casas, o Palácio do Conde dos Arcos, o prédio da velha cadeia, as igrejas do “lado de lá” e do “lado de cá” da ponte.
E então me perguntou, como sendo a sua resposta: “quem você acha que fez tudo isto aqui?” E antes que eu começasse a ensaiar qualquer resposta, ela mesma se respondeu, e a mim: “foram os negros, os negros escravos. A negrada, como diziam os brancos. Estas pedras das ruas, as casas mais antigas, o palácio e as igrejas que hoje os turista visitam, foram feitas (e me mostrou as suas mãos com as palmas para cima) com as mãos dos negros escravos”. Se o que ela disse não foi assim, foi quase.
E então entramos. E ela, continuou a narrar acontecimentos de outros tempos, já sentada em sua cadeira. E contou, de seu saber ouvido e lido, o que seriam as condições de vida dos escravos nas minas. E como deveriam viver os que construíram o que até hoje faz a fama de uma cidade transformada em “Patrimônio Cultural da Humanidade”. Lembrei um poema de Bertolt Brecht, que não sei se Cora Coralina leu e não sei se lembrava: “perguntas de um trabalhador que lê”. E ele começa quase como a fala de Cora: “Quem construiu Tebas, a de sete portas?”.
Sem que isto desmereça outras escritoras de seu tempo, de sua idade e formação, para se poder avaliar a coragem de Cora no que existe, ora desvelado, ora oculto em boa parte de seus escritos, é preciso não esquecer que esta mulher que escreveu uma ode ao milho (que Pablo Neruda gostaria de haver escrito) e uma outra às muletas (assim como João Cabral de Mello Neto escreveu um poema à aspirina), criou poemas possuídos por uma serena ferocidade contra os males humanos de seu tempo, tais como a seu tempo outra mulher alguma de Goiás ousou escrever.
Este livro de arqueologia de uma vida faz com Cora um momento de justiça que talvez nem lhe fizesse muita falta. Mas uma vez pesquisado e retratando com minúcias alguns diferentes instantes de sua trajetória, entre fotos, documentos e depoimentos, Raízes de Aninha nos revela uma pessoa talvez esquecida entre a doceira e a mulher poeta. Por onde passou, cada cidade, sobretudo as do interior de São Paulo, ao lado da Cidade de Goiás, Cora deixou um pouco mais do que amigas e lembranças. Deixou sinais do ardor de sua passagem. Quem criava, sem o marido, filhos e filhas e escrevia poemas, batalhava também em nome de causas que iam da criação do “dia do vizinho” até a presença militante na Revolução Constitucionalista de São Paulo. Ou a voz de uma quase velha que quase sozinha se levanta na defesa de lavradores pobres e espoliados entre as terras e as mãos dos ricos de Andradina. Ela raramente era lembrada por nós no âmbito dos “movimentos de cultura popular” de que eu mesmo participei, inclusive em Goiás. Mas, como muitas vezes acontece com outras mulheres e homens que escrevem, não é a sua mensagem social para um “agora”, mas as suas palavras humanas são para “sempre”, o que se deve esperar de uma pessoa como Cora. Aliás, João Guimarães Rosa um dia disse exatamente algo assim, ao explicar ao seu entrevistador alemão, Gunter Lorenz, porque ele não era um “escritor político”.
De outra parte, quando assumiu uma cátedra no Collége de France, Roland Barthes deu uma aula sobre a... aula. Sua maravilhosa fala daquele dia virou um livro que existe em Português com este mesmo nome: “Aula”. Ao longo da fala e do livro, Barthes defende a idéia de que a ciência é que é lunática e fantasiosa. E a literatura, ela sim, é realista. É um retrato de arte sobre a verdade das coisas. E ele chega mesmo a ousadamente dizer que um livro como Robinson Crusoé talvez contenha mais de Geografia do que muitos compêndios escolares sobre o assunto. Possivelmente por fugir de falar “politicamente” sobre as coisas através das quais os homens se mentem, a literatura busca conviver com o subsolo do mistério do humano onde, em um plano mais necessariamente desnudado, os gestos e os seus atores tenham que se haver com as suas verdades. Seus doces eram doces sem açúcar. Seus escritos não raro são amargos e são salgados.
Muitos estudos e escritos, entre belos e rigorosos, existem sobre os mundos de Goiás. Li muitos deles, da literatura de Hugo de Carvalho Ramos à história de Luiz Palacin Gomes. Conheço poucos autores em que as raízes da vida de um lado e do outro do Rio Vermelho, muitas léguas, muitos tempos, muitos atores e autores além, tenham sido tão corajosa e poeticamente postos em folhas de papel – a mão ou com a velha máquina de escrever - como a poesia e a prosa desta velha doceira goiana.
Raízes de Aninha desvela uma boa parte do que ficou até agora em silêncio. Se era ou não para ser dito ou escrito, cada leitor e cada leitora, julgarão. Mas, lá de onde esteja, se ainda ama ler como quando entre nós, Cora haverá de gostar, entre risos e lágrimas, de se rever neste livro.
Anos depois de sua morte escrevi um conjunto de poemas-preces. Cada um deles pretende ser um gesto do corpo e, em conjunto, como nas horas canônicas dos monges beneditinos, os poemas atravessam as horas da noite e do dia. Seu nome é Orar com o corpo – poemas e preces para as horas do dia. Dediquei-o à comunidade do “Mosteiro de Goiás”, na quase beira do Rio Vermelho, um tanto depois que ele passa pela casa de Cora. Há nele um único poema dedicado a uma pessoa, com o seu em baixo do título. Quero com ele encerrar estas linhas que apenas, como um guia de cidade, desejam apontar - lembrando o costumeiro gesto largo de braços e mãos de Cora - a quem não conhece o lugar da “casa velha da ponte” o seu lugar em seu mundo: “é logo ali, do outro lado do rio”.
De uma autora que escreve espera-se que entre os seus escritos esteja contida a sua vida, velada, vestida, nua ou não. Alguns críticos da literatura serão contrários a que se busque na pessoa, na sua biografia, até mesmo nos cenários e contextos de sua vida social algum suporte, alguma fissura ou o eu seja para explicar a sua obra. Que o trabalho escrito inscreva e explique por si mesmo quem o escreve. Que a obra fale pelo autor e, não, a sua vida por sua obra. Outros dirão que não. Quero ser um deles.
E acaso não é esta uma das marcas dos tempos em que vivemos? Talvez os sinais de um futuro tão incerto, tão indecifrável, apesar de tantas previsões em uma sua face e na outra. Talvez o presente tão frágil e tão passageiro, tão pobre de pessoas e de gestos carregados do peso do sentido e da beleza. Tempos em que “tudo o que é sólido desmancha no ar”. Talvez por tudo isto e um pouco mais do que apenas “isto tudo” nos conduzam a querer voltar não somente à obra deixada por pessoas singulares, mas à sua vida. Ou a algumas dimensões de vivências de sua vida. Seus amores, suas lutas, seu sofrer. A obra talvez nunca escrita, ou talvez apenas aqui e ali rascunhada aos fragmentos, que é, aquém e além do que deixou por escrito, uma outra fala de sua própria vida.
Então é bom voltar a Goiás – Cidade de Goiás, Vila Boa de Goiás, Goiás Velha – e ver ao lado das águas que ainda passam e já não são mais tão claras e tão “vermelhas” do Rio Vermelho, uma casa logo ao lado do “outro lado da ponte”. Uma casa como algumas outras da velha cidade. Uma casa de um só andar, nem de pedras e nem de duras argamassas. Dessas casas escuras, armadas com ferros e outros artifícios contra o passar voraz do tempo. Ao contrário. Uma casa branca e de janelas azuis, feita entre o barro amassado à mão e os antigos adobes, tijolos secados no sol. Matérias frágeis que mãos hábeis arrancavam das beiras e dos barreiros dos rios e misturavam com água e cal. E edificavam com elas casas e igrejas. O falar delas através da fala de Cora virá um pouco adiante. Vocês esperem.
Saber de pessoas, suas vidas, seus segredos um dia aos poucos revelados por elas próprias, confidentes de sempre ou de última hora, ou por outras mulheres e outros homens. Saber aquilo que, por pudor ou por esquecimento, uma mulher que falou com uma tão rara coragem em seu tempo, sobre as armadilhas e os ardis de seu próprio tempo, silenciou a respeito de si mesma.
Mas não Cora, que desde os primeiros livros disse em prosa e verso quem ela era, a pequena e deixada ao lado, Aninha do vintém de cobre. A menina ainda pequenina e já sofrida. Em um tempo em que as mulheres de cidades como Goiás – escritoras ou não – guardavam segredos de si mesmas e se gastavam em louvar os seus e os outros seres eleitos de suas memórias – em geral os “vultos do lugar” - Cora Coralina os esquece e escreve sobre ela mesma, sobre os seus, seus mundos e os outros de seu tempo, deserdados da sorte, com uma coragem em que algumas pessoas querem ver a bruxa, quando deviam ver a fada. Aquela que, com um toque dos dedos, desnuda o mal do mundo.
No entanto, se ela escreveu desde sempre sobre ela própria, porque escrever, tantos anos depois, um livro sobre ela? Se quase toda a poesia de Cora Coralina é uma também biografia escrita “no calor da hora”, como em Cecília Meireles e, bem mais ainda, como em Adélia Prado, porque redizer o que ela já disse por escrito? Se com uma tão bela e feroz clarividência ela se desnudou, entre a confissão de si mesma e a crítica acurada de seu mundo, ao mesmo tempo em que, para dizer a verdade da beleza do que havia ao seu redor, ela pedia ao milho da terra e aos filhos dos homens que tirassem de sobre a pele as suas cascas, as suas roupas, e se mostrassem na dura aspereza e na suave inocência de seus corpos, porque escrever sobre ela, Cora? Por que este livro? Por que Cora Coralina – raízes de Aninha?
Ao ler o livro e ver suas imagens o leitor verá os seus motivos, desde as primeiras páginas. Entre os poemas e outros escritos de si mesma e de seus mundos, conhecemos de Cora Coralina algumas de suas raízes mais profundas. As raízes fincadas no chão da Cidade de Goiás. E conhecemos, entre os galhos mais altos e por sobre a copa da árvore da pessoa de Cora, os seus frutos. As lembranças tardias de quando, tantos e muitos anos depois, ela volta à cidade e à casa de que nunca saiu quando foi embora para São Paulo. Talvez ela tenha antecipado em seus gestos de peregrina, errante e estrangeira que um dia volta, uma bela frase dita por algum personagem de Mia Couto, em alguma página de algum de seus livros: “os homens voltam para casa; as mulheres são a casa”.
Este livro recobre silêncios. Momentos do esquecimento. Passagens da vida espalhadas por ela nos cantos das casas em que viveu em Jaboticabal, em Penápolis, em algum bairro de São Paulo, entre os barros de uma Andradina recém-criada e, claro, em uma Goiás de antes da ida e uma outra, depois da volta. Passagens que poderiam haver ficado na sombra para sempre, e que neste livro retomam o seu lugar entre os recantos da “casa velha da ponte”. O grande perigo da lembrança de quem criou tanto e se foi antes de nós, é transformar uma pessoa notável em um personagem, e o personagem em uma celebridade (este adjetivo que a mídia de agora tornou tão vazio!), e a celebridade em um mito, e o mito, e o mito em um ídolo. E um ídolo em tudo, menos no ser da pessoa que ele encobre.
Mesmo que alguns leitores encontrem entre as páginas de Raízes de Aninha uma Cora colorida demais - e ela coraria ao se ver assim – celebrada demais, separada demais das outras pessoas “comuns”, na verdade o que este livro revela é, mais do que os contextos, cenários e cenas da vida de Cora Coralina, as suas múltiplas e (algumas) quase silenciadas vivências. Sabemos de suas confidências ditas e escritas e do que já se escreveu sobre ela.,. que Cora foi uma mulher escritora de seu tempo, uma poeta, uma severa crítica e uma silenciosa – mas nunca silenciada – militante de causas sociais. Razões de luta acesa que além de serem ditas por escrito em seus livros, foram faladas de público muitas vezes – inclusive nos ásperos tempos dos governos militares – e foram vividas por uma mulher que, não esqueçamos, tinha em Francisco de Assis um seu modelo de vida e de virtude e poderia ter outro em Gandhi. Mas que nos anos mais escuros de uma história acontecida também dentro da Cidade de Goiás e entre Goiás e a Amazônia, a fez admiradora e amiga de dois bispos notáveis pela sua coragem: Tomás. Balduíno e Pedro Casaldáglia
Foi entre as páginas deste livro que eu - um alguém que entrou algumas vezes na “casa velha da ponte” e que em algumas, entre café e doces, conversou devagar com Cora – descobri ou relembrei a mulher casada e mãe, e avó e bisavó; e a dona de pensão e de uma loja de retalhos chamada “Borboleta”. A mulher que para viver e “criar os meus filhos” depois da morte do esposo vendeu pelas ruas de São Paulo livros da José Olympio, e vendeu doces. E que mais tarde e mais afortunada, possuiu um sítio e semeou e colheu com as mãos o que plantou.
Tenho lembranças de suas falas, de sua vida. Quero recordá-las aqui, porque uma delas revela uma face da mulher de casa e da doceira Cora e, a outra, a sua face de mulher que não precisa ir além da calçada de casa para saber em que mundo se viveu “ali”, antes dela, e em que mundo se vive ainda agora.
Na primeira vez em que estivemos juntos – era no meio dos anos setenta - ela estava no quintal da casa. Um grande quintal que em parte margeia as águas do Rio Vermelho. Ela cuidava de plantas e colhia frutas. Assim que desapertamos as mãos ela me levou a passear entre as árvores do quintal. E, sem que eu perguntasse coisa alguma foi revelando o que era cada uma, sobretudo aquelas que, como as figueiras, davam a ela os frutos caseiros de seus doces.
Quando entramos na casa ela começou a colocar em pequenas caixas de papelão sem rótulos ainda, primeiro uma folha fina de papel de seda, depois, um a um, os seus doces. E então disse uma frase que com pequenas mudanças coloquei em um poema dedicado a ela, bem depois de quando ela se foi, e com que desejo encerrar estas lembranças e confidências. Ela disse: “eu sou doceira”. E depois falou que mesmo escrevendo desde sempre, a poesia era o que ela fazia quando não criava doces. E não disse uma palavra em favor de seus poemas. Mas os olhos pequenos brilhavam de orgulho quando falava deles, os seus doces. “Eles têm pouco açúcar e são doces. E este é o meu segredo”. E eram assim. E narrou longamente o caso do padre que levou uma caixa de doces ao “Santo Padre”, o Papa.
Anos depois, mas não tantos, eu fazia uma pesquisa sobre os negros da Cidade de Goiás. Era estudante de Mestrado em Antropologia e aquela seria a minha dissertação. Conversei com muita gente: brancos, mestiços e, sobretudo, negros. Fui uma tarde conversar com Cora Coralina. Antes, entre outros de lá, ouvira dos brancos falas evasivas sobre os negros escravos do passado e os de agora. E eu me lembrei das duras palavras de Auguste de Saint-Hilaire quando, entre as minas de Minas e as de Mato Grosso, ele passou pelas de Goiás e esteve na “Vila Boa” a caminho de Cuiabá.
Perguntei sobre os negros: os de antes, os de agora.
E antes de dizer qualquer resposta ela se levantou da cadeira e saiu para o lado fora da casa, dando com a mão sinais de que eu a seguisse. Na calçada, diante da porta da “casa da ponte” ela repetiu um gesto que, a meu ver, foi sempre a sua assinatura corporal. Estendeu os braços com as mãos abertas e os dedos juntos, com o gesto largo de quem, com um pouco mais, poderia alçar vôo. Ainda sem falar nada apontou lugares que se via e lugares escondidos entre os outros: casas, o Palácio do Conde dos Arcos, o prédio da velha cadeia, as igrejas do “lado de lá” e do “lado de cá” da ponte.
E então me perguntou, como sendo a sua resposta: “quem você acha que fez tudo isto aqui?” E antes que eu começasse a ensaiar qualquer resposta, ela mesma se respondeu, e a mim: “foram os negros, os negros escravos. A negrada, como diziam os brancos. Estas pedras das ruas, as casas mais antigas, o palácio e as igrejas que hoje os turista visitam, foram feitas (e me mostrou as suas mãos com as palmas para cima) com as mãos dos negros escravos”. Se o que ela disse não foi assim, foi quase.
E então entramos. E ela, continuou a narrar acontecimentos de outros tempos, já sentada em sua cadeira. E contou, de seu saber ouvido e lido, o que seriam as condições de vida dos escravos nas minas. E como deveriam viver os que construíram o que até hoje faz a fama de uma cidade transformada em “Patrimônio Cultural da Humanidade”. Lembrei um poema de Bertolt Brecht, que não sei se Cora Coralina leu e não sei se lembrava: “perguntas de um trabalhador que lê”. E ele começa quase como a fala de Cora: “Quem construiu Tebas, a de sete portas?”.
Sem que isto desmereça outras escritoras de seu tempo, de sua idade e formação, para se poder avaliar a coragem de Cora no que existe, ora desvelado, ora oculto em boa parte de seus escritos, é preciso não esquecer que esta mulher que escreveu uma ode ao milho (que Pablo Neruda gostaria de haver escrito) e uma outra às muletas (assim como João Cabral de Mello Neto escreveu um poema à aspirina), criou poemas possuídos por uma serena ferocidade contra os males humanos de seu tempo, tais como a seu tempo outra mulher alguma de Goiás ousou escrever.
Este livro de arqueologia de uma vida faz com Cora um momento de justiça que talvez nem lhe fizesse muita falta. Mas uma vez pesquisado e retratando com minúcias alguns diferentes instantes de sua trajetória, entre fotos, documentos e depoimentos, Raízes de Aninha nos revela uma pessoa talvez esquecida entre a doceira e a mulher poeta. Por onde passou, cada cidade, sobretudo as do interior de São Paulo, ao lado da Cidade de Goiás, Cora deixou um pouco mais do que amigas e lembranças. Deixou sinais do ardor de sua passagem. Quem criava, sem o marido, filhos e filhas e escrevia poemas, batalhava também em nome de causas que iam da criação do “dia do vizinho” até a presença militante na Revolução Constitucionalista de São Paulo. Ou a voz de uma quase velha que quase sozinha se levanta na defesa de lavradores pobres e espoliados entre as terras e as mãos dos ricos de Andradina. Ela raramente era lembrada por nós no âmbito dos “movimentos de cultura popular” de que eu mesmo participei, inclusive em Goiás. Mas, como muitas vezes acontece com outras mulheres e homens que escrevem, não é a sua mensagem social para um “agora”, mas as suas palavras humanas são para “sempre”, o que se deve esperar de uma pessoa como Cora. Aliás, João Guimarães Rosa um dia disse exatamente algo assim, ao explicar ao seu entrevistador alemão, Gunter Lorenz, porque ele não era um “escritor político”.
De outra parte, quando assumiu uma cátedra no Collége de France, Roland Barthes deu uma aula sobre a... aula. Sua maravilhosa fala daquele dia virou um livro que existe em Português com este mesmo nome: “Aula”. Ao longo da fala e do livro, Barthes defende a idéia de que a ciência é que é lunática e fantasiosa. E a literatura, ela sim, é realista. É um retrato de arte sobre a verdade das coisas. E ele chega mesmo a ousadamente dizer que um livro como Robinson Crusoé talvez contenha mais de Geografia do que muitos compêndios escolares sobre o assunto. Possivelmente por fugir de falar “politicamente” sobre as coisas através das quais os homens se mentem, a literatura busca conviver com o subsolo do mistério do humano onde, em um plano mais necessariamente desnudado, os gestos e os seus atores tenham que se haver com as suas verdades. Seus doces eram doces sem açúcar. Seus escritos não raro são amargos e são salgados.
Muitos estudos e escritos, entre belos e rigorosos, existem sobre os mundos de Goiás. Li muitos deles, da literatura de Hugo de Carvalho Ramos à história de Luiz Palacin Gomes. Conheço poucos autores em que as raízes da vida de um lado e do outro do Rio Vermelho, muitas léguas, muitos tempos, muitos atores e autores além, tenham sido tão corajosa e poeticamente postos em folhas de papel – a mão ou com a velha máquina de escrever - como a poesia e a prosa desta velha doceira goiana.
Raízes de Aninha desvela uma boa parte do que ficou até agora em silêncio. Se era ou não para ser dito ou escrito, cada leitor e cada leitora, julgarão. Mas, lá de onde esteja, se ainda ama ler como quando entre nós, Cora haverá de gostar, entre risos e lágrimas, de se rever neste livro.
Anos depois de sua morte escrevi um conjunto de poemas-preces. Cada um deles pretende ser um gesto do corpo e, em conjunto, como nas horas canônicas dos monges beneditinos, os poemas atravessam as horas da noite e do dia. Seu nome é Orar com o corpo – poemas e preces para as horas do dia. Dediquei-o à comunidade do “Mosteiro de Goiás”, na quase beira do Rio Vermelho, um tanto depois que ele passa pela casa de Cora. Há nele um único poema dedicado a uma pessoa, com o seu em baixo do título. Quero com ele encerrar estas linhas que apenas, como um guia de cidade, desejam apontar - lembrando o costumeiro gesto largo de braços e mãos de Cora - a quem não conhece o lugar da “casa velha da ponte” o seu lugar em seu mundo: “é logo ali, do outro lado do rio”.
Partir
(Cora Coralina)
Já não faz mais doces
e segredava: sou doceira,
a poesia é só o acaso.
Tinham pouco açúcar e eram doces
e esse, dizia, é o meu segredo.
Já não andava nas ruas da cidade:
as pedras cansavam os pés, eram aventuras
de antes, e do mundo bastava o seu quintal
de figos, mamões, milho e memórias.
Houve um tempo quando o rio Vermelho
tinha ouro e sol e peixes e águas limpas.
Hoje, do que vale olhar pela janela?
Há dentro dos olhos uma paisagem, e é mais bela.
Já quase não escrevia, gastou o rol das rimas
e sonhava ser sábia em silêncio.
Quando um dia a morte veio, estava pronta
como quem tira do forno o doce,
apaga a vela, põe no ombro o xale
e abre a porta e sai e vai embora.
(Carlos R. Brandão)
Carlos Rodrigues Brandão
Rosa dos Ventos – Sul de Minas
Inverno de 2009
[1] Quem escreveu esta epígrafe foi uma pessoa que não conheço. Seu nome: Geraldo Estáquio de Souza. Eu a encontrei em um marcador de livros distribuído em um encontro em educadores no Rio Grande do Sul, num agosto de 2002. Ela me é uma espécie de guia, e quando pensei em algo que pudesse começar um pequeno escrito sobre a pessoa de Cora Coralina foram estas palavras que me vieram à lembrança. Se Cora não as escreveu elas me parecem ser, no entanto, como um retrato fiel da alma de sua pessoa.
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