Estava numa fazenda cafeeira, uma das maiores do estado de São Paulo. De pé, no meio do terreiro de secagem, fiquei cercada de grãos, olhei o entorno, girei o corpo... ate aonde a vista alcançava havia pés de café. Um mar verde invadiu minha alma e me levou à infância. Tudo isso faz parte da Ritelisa mineira, que gostava de ficar nos terreiros de café procurando um tesouro. Meus avós, italianos da Sardenha, vieram direto para as plantações de café no sul de Minas. Como não poderia deixar de ser, o café representa muito para mim. E, agora ali, naquela vastidão de cor, som e aromas eu revivia a alegria da procura.
No enorme terreiro os grãos estavam sendo colocados para secagem. Café Bourbon, o melhor, o mais puro... como meus sentimentos. Todo barista sabe apreciar um café, mas toda mineira sabe saborear uma saudade, ainda mais quando ela tem cafeína literária. Sim... uma vez escrevi um poema sobre isso... Colhidos/ Cafés eternos/ Despertando poetas/Fagulhas da noite/Riscos na brochura... É nesse despertar noturno que escrevo sempre, regada por uma xícara de café. Resquício de uma infância saudável.
Não tive outra opção, ali, naquela fazenda, precisava escrever, sentei-me numa muretinha, no centro de toda minha nostalgia, peguei caneta e papel; escrevi. A tinta me trouxe lembranças... aquela menina que corria atrás de seu tesouro, varrendo com um rodo os grãos. A procura de tantos anos, ás vezes achava, ás vezes não. Procurava meu grão de Filipe, minha “paga maior da solidão”. Já, naquela época, preferia o isolamento, a procura solitária de um tesouro lúdico. De grãos unidos. E, quando o achava, tudo era festa. Levantava, quieta, o grão preso na palma da mão, escondido, seria surpresa para os irmãos e seria uma troca para os adultos. Eu saía de fininho, fingindo que nada havia encontrado, mas meus olhos me delatavam... sim, meu olhar mudava. Podia-se ler neles: EU ACHEI O TESOURO. ELE ESTÁ COMIGO. Como um letreiro de neon em noite de lua minguante. Todos liam isso em mim. E todos se calavam. Até a chegada da noite, quando nos recolhíamos perto do fogão à lenha, o radinho de pilha ligado - um chiado em forma de música; o crepitar das chamas, o feijão borbulhando no caldeirão e o arroz secando na panela de ferro. Era a hora de mostrar meu achado. Chegava perto de meu tio, estendia a mão e gritava para que todos ouvissem: Paga meu Filipe!... era a senha, era o rótulo, era a chave para uma conquista. Que conquista?! Qualquer uma. Sim... o importante não era o que vinha depois, tanto que nem me lembro do que ganhava. O importante era esse berro voluntário, esse grito de sucesso, essa alegria infantil de quem conseguira uma façanha. Era bom demais!
De repente me despertei para a fazenda onde estava. Quantos e quantos grãos de Filipe escondidos entre os milhares de grãos a secar. Minha vontade era de rastelar cada fileira de grãos naquele mar verde. Procurar meu tesouro. Mas, aquela Ritelisa não veio à tona... fiquei ali parada, olhando o terreiro. Os grãos eram despejados por um enorme trator, homens puxavam os grãos com rodos de madeira. Há um modo todo especial de se fazer isso, tende-se observar o sol, os grãos são puxados na mesma direção da sombra. Assim secam mais rápido, então... a cada meia hora muda-se a posição dos grãos. Uma técnica milenar. Fiquei só observando. Procurei-me ali e não me encontrei. Fui mais além. Caminhei até os grãos, agachei-me no meio deles, as cores verde, amarelo e vermelho encheram minha visão. Passei a mãos, acariciei os grãos. Peguei o mais vermelhinho. Apertei-o entre os dedos... inalei o mais puro odor de minha infância. Dali por diante voltei a ser Ritelisa. Coloquei o grão na boca, não o mordi, deixei que ele impregnasse minha saliva. Uma goma cafeinada foi tomando conta de mim. Depois saiu a casca, em seguida os grãos soltaram-se na minha boca. Fiquei com os três grãos dançando canções de ninar em mim.
É claro que nessa hora minha vontade maior foi procurar meu tesouro. Revirei aqueles grãos com os olhos, depois foi com as mãos mesmo. E, nada de Filipe. Fiquei frustrada, procurei um dos agricultores e perguntei-lhe se ainda existia o tal do Filipe. Ele me respondeu que os grãos antes de serem secados passavam pela enorme máquina de lavagem e ali os grãos de Filipe eram desmembrados. Não ficava um Filipe inteiro. “Sabe, dona... eu tenho três Filipes em casa, que eu levei para meus filhos...eu os apanhei no cafezal”. Pronto!... essa era a solução atual, trocar o terreiro de café pela plantação. Fui atrás de meu Filipe. Atravessei o terreiro, passei pelo escritório da fazenda, puxei o portão e voltei a ser criança, tirei os sapatos, caminhei por entre os pés de café... à procura de meu Filipe.
Rita Elisa Seda
2 comentários:
Seda,
Parabéns pela crônica, além de linda me identifiquei com cada contexto. Por falar em contextos, cheguei até seu texto em busca da expressão "grãos de Filipe". Sou mineira criada na fazenda cafeeira e sempre ouvi tal expressão, além de me divertir com suas lendas....rsss....
Hoje, já em SP, deparei com duas bananas geminadas e rapidamente voltei a minha infância.....quando percebi já estava inundada de nostalgia...
Entretanto, uma dúvida ficou : "Por que grãos de Filipe?"
Sou de Mostardas distrito de Monte Alegre do Sul,temos plantação de café até então nunca tinha ouvido falar da expressão "grão Filipe" Foi qdo meu esposo chegou com esse grão e me disse" e pra vc meu bem" pois é assim q nos tratamos ,diz a lenda quem o receber algo muito bom vai acontecer obs: já ganhei 3 grão Filipe ,eu o amo.
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