PALAVRAS DE SEDA

Escrever passou a ser necessidade diária, como a respiração mantém o corpo vivo, o ato de escrever mantém minha alma solta para trafegar pelo mundo dos sonhos.
Ao me deixar levar pelas palavras visualizei novo horizonte e criei asas. Voei.
Em vinte anos escrevi dezenove livros em vários estilos: conto, crônica, poesia, romance e biografias.
Alguns de meus livros biográficos foram livremente inspirados para o cinema e TV. Ganharam prêmios.
O importante é continuar escrevendo, registrando histórias e estórias para que a memória não se perca no mundo digital.
De tanto escrever biografias resolvi deixar o registrado meu ensaio biográfico cujo viés é meu Anjo da Guarda. Pode parecer um pouco estranho, porém é bem real. Por isso, acesse também o meu blog "Os Anjos não envelhecem", eu disponibilizei meu livro na íntegra, onde constam fotografias e documentos. O livro físico está esgotado.
Viaje através das palavras. Bem-vindo (a).

















































































































sábado, 23 de maio de 2020

DEITADO NA RELVA - JOÃO BATISTA VENÂNCIO

DEITADO NA RELVA

Acordou e demorou-se a levantar. Levantou e demorou-se a acordar. Esperou sentado até que o ânimo lhe ativasse o halo espiritual que não andara morto, mas adormecido como o corpo.
Seguiu o novo ritual adquirido há muito pouco: abrir a porta que também é janela e ver a vida pulsante, tão plural e diferente do que outrora se via. A cidade já estava viva, o sol já brilhava, os carros apenas iam; não vinham. Obrigados a fazer sempre a mesma rota pela contramão a eles imposta. Os pássaros, em contrapartida, voavam nos mais variados sentidos. Faziam-no felizes e parecia que seu único desejo era o de exalar a doce essência de sua incondicional liberdade. O que isso causava? Inveja.
Um minuto de apreciação e o barulho ritmado da vassoura na calçada já lhe fizera despertar definitivamente e tomar consciência de que era mais que tempo de o dia começar na prática.
Na cozinha os cheiros dividiam o pequeno espaço: por um átimo de segundo, o cheiro de gás. Por um instante um tanto maior, porém muitíssimo breve, o cheiro de pó de café quando a tampa da lata se abriu. Por fim, perdurou o cheiro do café já coado, que rapidamente se reduziu (ou se elevou) àquele sublime gosto de manhã.
Na pia, louça suja. Na cama, cobertor esticado. Na varanda, o desejo da relva.
Pensou por um instante sobre a necessidade de se deitar na relva como fizera na infância e por algumas vezes não valorizou. Coçavam as costas e os braços “não me deito mais na grama!”, lembrou-se da descompromissada promessa infantil. E desejou por um instante, que pareceu eterno, ter aos pés a relva pisoteada pelos cavalos que andavam soltos no quintal.
Enquanto ocorria o tal instante, deixou-se levar pelo sentimento que saiu da imaginação e passou a percorrer a sola dos pés. Eles estavam sobre cimento, mas nada impedia que a sensação fosse de relva.
Neste dia, descobriu que as lembranças partem de dentro; e do lado de dentro apenas ele poderia acessar.
Foi assim que descobriu que para se deitar na relva, basta apenas que ela exista. Não necessariamente do lado de fora. Mas do lado de dentro, onde se guarda o que é essencial.
Sentiu. Quis. Deitou-se.
De início, pareceu-lhe uma relva mais densa. Mais dura. Mais áspera.
Analisou. Refletiu. Concluiu.
Era realmente uma relva diferente da que existe do lado de fora.
– E isso é lindo! – disse em voz alta.
Hora de sair da relva e fazer acontecer o dia.
E fez deste momento de levantar-se da relva, um momento feliz por ter a certeza de que a sensação da relva de fora e da relva de dentro são distintas. Isso é a garantia de que ela estaria presente onde fosse, mas que apenas quando corpo e alma se conciliassem seria possível, nesta completude poética, deitar-se na relva e senti-la por fora e por dentro.
Enquanto só foi permitido sonhar, sonhou. E quando puder finalmente reviver a relva, certamente o fará. E deitado, claro, com a relva por fora e por dentro.
Hora de lavar a louça, que neste momento não lhe pareceu tão atraente e poética como os pensamentos anteriores. Talvez louça suja não conheça a delícia de se deitar na relva.


 João Batista Venâncio






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